sábado, 14 de março de 2009

Capítulo 6 - Fuga Sob a Lua

- Eu sei de uma ponte no Distrito Sul. Não é confiável e só costuma ser usada para traficar poêmia – disse o bárbaro, tentando pensar na única saída desimpedida.

- Vai ter que servir. Além disso, não temos muito tempo – Ares e Grammal começaram a caminhar, o semi-orc guiando o cavaleiro pelos escuros becos da Cidadela dos Ladrões – Se toparmos com algum guarda, só vai haver mais confusão.

Grammal conhecia Yamasha suficientemente bem para evitar as áreas indesejáveis. Agora, porém, não tinha alternativa. O Distrito Sul era o bairro dos loucos, dos irrecuperáveis, dos viciados que passavam dia e noite embriagados pela fumaça da poêmia.

A poêmia era uma das plantas mais cobiçadas do reino e nascia em cores diversas, cada qual com sua propriedade. Algumas eram usadas para produzir veneno, outras para causar alucinações, algumas para fazer um homem relaxar e havia aquelas utilizadas como afrodisíaco. Tudo dependia do tipo da flor e da forma como era preparada. É claro que muitos consumiam a poêmia como entorpecente, tornando-se profundamente dependente de seus efeitos.

O Distrito Sul era cheio de pequenas tavernas onde os traficantes vendiam principalmente a poêmia vermelha, que induzia o usuário a um estado moderado de loucura. As reações variavam. Os mais violentos sonhavam com inimigos imaginários, lutavam com o vento e matavam uns aos outros em meio ao frenesi. Mas a maioria ficava ali, caída pelas ruas, na sarjeta, sem vontade nem mesmo para se mexer. A boa notícia era que até os ladrões evitavam a vizinhança, e os guardas só apareciam em raras ocasiões.

Ares e Grammal entraram por uma rua mais ampla, desviando dos moribundos no chão - às vezes era difícil saber quem estava vivo e quem estava morto. É verdade que qualquer guerreiro bem treinado reconhecia um cadáver pelo cheiro, mas o aroma adocicado da planta poluía o ar, confundindo os odores comuns.

Os dois passaram reto pelas estalagens, até chegar a uma esquina próxima à muralha. Grammal enxergou uma porta de ferro reforçada, recortada na pedra, que dava acesso ao lado de fora de Yamasha. Estava guarnecida por cinco soldados.

Antes que fossem notados, ele e o cavaleiro recuaram às sombras.

- Cinco guardas – sussurrou Grammal – Usam cotas de malha, capacetes de aço e carregam espadas.

- Esta é a saída? – perguntou Ares, com certo ar de decepção – Não é um portão, é uma porta. Muito menor do que eu pensava.

- Tanto melhor. Menos guerreiros para defendê-la.

O cavaleiro não respondeu. Em vez disso, apontou para cima. A muralha era suficientemente grossa para formar, em seu topo, um passadiço, uma área em que os soldados podiam circular, proteger e observar. Lá, havia mais cinco guardiões com arcos, prontos a atirar flechas em quem arrumasse briga na rua.

- Aí se vai o nosso plano – desanimou o bárbaro – Até podíamos encarar esses guardas, mas não com uma chuva de flechas sobre nossas cabeças.

- Você consegue escalar a muralha?

Grammal sorriu, em orgulho quase infantil. Fora criado nas montanhas Naghara, uma região deserta e inóspita onde a caça estava sempre em covis escondidos na rocha.

- Eu, claro. Mas você, duvido – ele olhou para a armadura pesada de Ares.

- Tenho uma idéia.

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Os cinco sentinelas que defendiam a porta não sabiam exatamente o que estava acontecendo. Aquela entrada nunca precisara ser protegida. Os governantes da cidade tinham um acordo com os traficantes – deixavam a passagem livre em troca de um gordo suborno. Mas algumas horas atrás um viajante matara quatro vigias no portão principal, tentando furar o bloqueio. Depois, desaparecera na noite.

Tudo o que aqueles soldados tinham era uma descrição tosca. O sujeito usava uma espada de duas mãos e vestia uma armadura completa. Por via das dúvidas, a ordem era para impedir que qualquer um deixasse Yamasha até que as casas e tavernas fossem vasculhadas.

O sargento Zanoro, que comandava aquela guarnição, não tinha esperança de prender ninguém em seu turno, até que uma figura de capa e capuz apareceu caminhando em direção à muralha. De início, não pensou que pudesse ser o fugitivo, mas depois entendeu que o sobretudo poderia estar sendo usado para ocultar uma armadura.

- Alto lá, seja quem for – o sargento tomou a iniciativa – Esta passagem está fechada.

- Peço permissão para transpô-la. Vim a Yamasha tratar de negócios, e agora tenho assuntos urgentes em outras partes do reino – era verdade.

O sargento, então, notou que o forasteiro trajava mesmo uma armadura, e levava uma espada igual à descrita embainhada nas costas. Podia ser o homem que buscava! Por um instante, sentiu-se animado por tê-lo ao seu alcance; por outro, ouvira que era um oponente terrível em combate. Cauteloso, escorregou a mão ao cabo da espada. Para sua surpresa, porém, o forasteiro fez o mesmo, e desafiou:

- Quer apostar quem saca mais rápido?

Zarono gelou. Aquele homem era rápido em suas reações, e movia-se como um espadachim competente. Mas logo em seguida lembrou-se que tinha o auxílio de quatro militares a pé e cinco arqueiros no passadiço, que observavam atentos a conclusão do impasse.

- Seu cão estrangeiro! Ajoelhe-se agora e entregue sua arma. Só preciso dar um sinal aos meus arqueiros e você será feito em frangalhos.

- Vai sacar ou não? – alheio às ameaças, o cavaleiro estava focado no combate. Soou como um novo desafio, mas não era. O código da cavalaria proibia os paladinos de atacar oponentes desarmados.

Furioso, o sargento puxou a espada. Foi tudo muito rápido. Antes que a lâmina saísse completamente da bainha, a arma do cavaleiro brilhou na noite e rasgou a garganta do militar, de um lado a outro.

Os outros guardas a pé pegaram suas espadas, e no passadiço os arqueiros miraram as flechas. Mas quando estavam prontos a atirar, uma mancha assustadora revelou-se na escuridão. Grammal subira na muralha e agora pegava os sentinelas desprevenidos!

Com um só golpe, o bárbaro pôs dois a nocaute. O primeiro sentiu o fio do machado na cabeça. Nem o elmo de aço ajudou. O golpe abriu um buraco no crânio e seguiu seu curso para atingir o segundo arqueiro no rosto. Um terceiro levou um esbarrão e perdeu o tiro, mas outros dois conseguiram disparar.

Uma flecha errou o alvo e a outra acertou o cavaleiro Ares no ombro. Felizmente, a armadura absorveu o impacto, e a flecha ficou presa na ombreira de metal, sem alcançar a carne.

Com o líder morto, era mais fácil derrotar os outros guardas. Ares entrou em combate com quatro guerreiros, feriu um no braço e matou o segundo com uma estocada no peito. Os restantes fugiram.

No passadiço, aconteceu coisa parecida. Dos três arqueiros ainda vivos, só um tentou encarar Grammal, e acabou com o machado fincado nas costas.

- Encontrei a chave – gritou Ares, lá de baixo, mexendo no cinto do sargento.

- Ótimo. Vamos sair logo daqui – insistiu o semi-orc, enquanto descia a muralha com habilidade impressionante.

Ares não entendia o motivo da pressa. É claro que não podiam ficar ali por muito tempo, mas os guardas haviam sido derrotados.

Então, escutaram um apito: um batalhão estava a caminho.

- Eu conheço o procedimento – justificou-se Grammal.


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Capítulo 5 - Cidadela dos Ladrões

Grammal, o bárbaro semi-orc, bebeu o último gole de cerveja da caneca. Já tinha tomado várias doses, mas sua resistência superior o fazia agüentar muitos copos sem desabar. Mito ou não, muita gente acreditava que os orcs até lutavam melhor quando bêbados, embriagados pela loucura do álcool.

Mas Grammal não estava bêbado... nem perto disso. Ele havia gastado todo o dinheiro que lhe restara com bebidas e jogo, e agora sobrara muito pouco – só uma dúzia de peças de prata e algumas moedas de cobre, nada mais.

Olhou à sua volta. Como nunca fora de economizar, tinha escolhido a melhor estalagem da cidade, o que ali não significava grande coisa. Yamasha era conhecida em toda a parte como “A Cidadela dos Ladrões”, um reduto reservado aos bandidos, criminosos e vilões mais deploráveis do reino.

A taverna chamava-se “A Fornalha”, provavelmente por causa da enorme lareira circular construída no centro do salão. A chaminé de latão lembrava a forma de um chapéu de aba larga, que recolhia a fumaça e o calor em excesso e os cuspia para a noite gelada. Mesmo no auge do verão, as madrugadas eram frias. Yamasha estava encravada no topo das montanhas Kapesh, um ponto estratégico, inacessível por cavalo e portanto difícil de ser sitiada ou invadida.

As mesas estavam lotadas de aventureiros apostando nos dados, prostitutas traiçoeiras e traficantes negociando porções de poêmia, uma flor exótica cujo fumo tinha propriedades alucinógenas.

Grammal enxergou o seu reflexo no fundo da caneca de ferro. Aos humanos, parecia um homenzarrão deformado, com os caninos inferiores projetando-se para fora da boca. Algumas cicatrizes de luta marcavam seu rosto, e a pele áspera exibia um tom acinzentado.

Era forte, até mesmo para um semi-orc, o que lha dava uma boa vantagem na hora de afundar o machado no crânio de um inimigo. Quando jovem, sentia-se desconfortável usando armaduras, mas a cautela o ensinou a vestir sempre uma placa de metal sobre o peito, o que já o salvara inúmeras vezes em combate.

O bárbaro pegou uma moeda de cobre e fez sinal para a bela moça que carregava copos de cerveja numa bandeja, mas a reação da atendente o surpreendeu.

- Já está pago – disse a jovem, pousando a bebida à sua frente.

- Por quem? – quis saber Grammal. A vida de escravo e mercenário o ensinara que nada nesta vida era de graça.

- Aquele sujeito ali, na mesa logo abaixo da escada – a moça apontou.

Sentado no canto mais escuro do salão, um homem bebia uma taça de vinho. Era humano, e tinha o corpo forte - sem dúvida um guerreiro. Vestia um sobretudo velho e surrado, certamente para ocultar uma armadura pesada. O rosto estava coberto pelo capuz.

O homem levantou a taça, como se fizesse um brinde, cumprimentando Grammal à distância. O semi-orc retribuiu e, curioso, foi até a mesa para conhecer a misteriosa figura que o havia saudado.

- Grammal, não é? Seu nome? – começou o forasteiro, e o bárbaro enxergou sua face. Era um homem novo, pouco menos de 30 anos. O rosto, porém, tinha a aparência madura, como o de um soldado que já lutara em muitas guerras. O cabelo fora aparado bem curto, protocolo comum nos exércitos civilizados, e estava armado com uma grande espada nas costas.

- Eu o conheço?

- De certa forma – o homem abaixou o capuz – Lutamos juntos uma vez, na ofensiva a Shusan.

- Juntos? – Grammal chegou mais perto para ver melhor o rosto do forasteiro – Não me lembro de você.

- Você era Sangue Negro? Ou ainda é? – Sangue Negro era a organização de mercenários a qual Grammal pertencia, e junto da qual ajudou a derrubar a fortaleza Shusan, numa campanha que reuniu vários exércitos há um ano.

- Bom... parece que você sabe um bocado sobre mim. Mas ainda não me disse quem é você.

- Meu nome é Ares, cavaleiro e soldado. Faço parte do corpo auxiliar do Oitavo Exército do Rei. Eu o vi lutar, e estou aqui para lhe oferecer um serviço. Isto é, se ainda trabalha como mercenário.

Antes que o homem terminasse, Grammal não conseguiu conter o riso. Era impressionante como aquela cidade era cheia de loucos, que faziam de tudo para enganar as pessoas. Ele só não compreendia o que o forasteiro ganharia com aquilo.

- Qual é a graça?

- Você é um cavaleiro do Oitavo Exército? Aqui, em Yamasha? – desatou a rir novamente. Ares supôs que fosse o efeito ao álcool – Sabe o que eles fazem com homens do rei por aqui?

- Uma coisa de cada vez. Primeiro, eu não sou um “homem do rei”. Disse que faço parte do corpo auxiliar. No momento, não estou a serviço da Coroa.

Ares tirou um saquinho de couro que levava no cinto e o entregou ao bárbaro. Incapaz de conter a curiosidade, Grammal espiou. Meia dúzia de pedras preciosas reluziram à luz dos candelabros: esmeraldas, turquesas e rubis avaliados em, pelo menos, 500 peças de ouro. Sem demora, o semi-orc fechou a bolsinha e olhou ao redor para ter certeza de quem ninguém os notara.

- Você guardou as pedras, então suponho que tenha aceitado o serviço – incitou Ares – Nem quer saber o que tem de fazer?

Grammal ficou confuso. O homem civilizado falava difícil e era tão direto que não deixava muitas opções.

- Tem mais? Digo, dessas gemas?

- Claro. Esta é só a primeira parte.

- Qualquer missão difícil para um cavaleiro é fácil para um bárbaro – descontraiu Grammal, tentando mostrar que não ficara encurralado com a conversa de Ares – Mas é bom saber que sou um guerreiro, não ladrão ou assassino.

- Quem falou em assassinato? – Ares se levantou. O semi-orc o seguiu até o lado de fora da estalagem.

- Tudo bem. Quando e onde eu começo?

- Já começou.

- Pode ser um pouco mais claro? – Grammal já estava começando a ficar irritado – Escuta uma coisa, cavaleiro, é com este machado aqui que eu ganho a minha vida. Não sei ler, escrever, e nunca fui bom com enigmas. Então, se quiser que eu o ajude, vai precisar ser mais específico.

- Você se lembra quando disse lá dentro que ninguém gosta de homens do rei por aqui? – ele abriu um pouco a capa, deixando aparecer a armadura. Era de metal, completa, e tinha um desenho indistinguível forjado no peito – Como um sujeito como eu chegaria até Yamasha? Escalando?

- Não com tanto peso. Não com uma armadura pesada.

- Eu entrei pela porta da frente. E pelo jeito o meu disfarce não funcionou. Não me impressiona – Ares parecia bem calmo para alguém com a cabeça a prêmio - Nunca fui bom em mentir.

- E o que aconteceu?

O cavaleiro sacou a espada.

- Eu tive que me defender.

- Se você arrumou confusão nos portões, então os guardas devem estar vasculhando a cidade à sua procura. Como pretende sair?

- Eu esperava que você me dissesse. Foi para isso que eu o contratei.

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Continua no próximo capítulo

Capítulo 4 - Pedra de Sangue

Cordilheiras Infinitas, seis meses atrás

Ares acordou no meio da noite, meio tonto, com o corpo suado. De repente, não tinha mais sono. Isso às vezes acontecia após uma campanha ou depois de qualquer grande batalha. Nessas circunstâncias, ele sabia que era inútil continuar deitado.

Pelo menos estava em casa, na segurança das montanhas. Uma pequena comunidade agrícola se estabelecera ali, há muitos anos, cultivando arroz em vastos platôs sobre o morro. Casas tipicamente orientais, de paredes de madeira e teto de telha, se espalhavam pelos jardins, à sombra da gigantesca escadaria que levava ao templo de Shara.

Ares bebeu um gole d’água de uma garrafa de cerâmica, pegou a espada e foi descansar na varanda. Era uma noite quente de verão e dali ele podia ver o templo, à direita, encravado no coração da montanha. À esquerda, os vários níveis de plantação acabavam num vale, onde um riacho nascia das rochas e formava um lago, antes de se enfiar na terra e terminar na floresta.

- Para quê a espada? – escutou Ares. Era Jedala, sacerdotisa-mor do templo de Shara e conselheira espiritual dos camponeses. Jedala havia encontrado Ares ainda criança e o criado até ele ser enviado à corte do príncipe Tharick, para se tornar um cavaleiro.

- Força do hábito – sorriu, deixando a arma de lado – E você, o que faz aqui? Também não consegue dormir?

Jedala sentou-se numa cadeira de bambu e observou o vale, contemplativa.

- Meu problema não é a falta de sono, são os sonhos... Alguns diriam que é uma benção, mas levando em conta a atual situação, eu não concordaria totalmente.

Os dois ficaram em silêncio por um minuto, tomando coragem para enfrentar o assunto porvir. Ares quebrou o gelo.

- Ele está vivo, não é? É por isso que os seus sonhos continuam acontecendo.

O olhar de Jedala caminhou pela vila, passeou pelo lago e foi encontrar o rosto do cavaleiro, ao seu lado.

- Eu disse que você deveria matá-lo.

- Eu tentei, mas não foi tão fácil. Shusan estava cercada. Cavaleiros, mercenários, magos... todos queriam a sua parte do espólio. E é claro que os feiticeiros chegaram na frente.

- Você não precisa se justificar. É uma coisa horrível esta que estou fazendo. Pedindo a você que mate uma pessoa. Eu jamais faria isso – e assim Jedala encarou seriamente o guerreiro – se este não fosse o seu destino.

Ares ficou calado, tentando pensar em alguma coisa a dizer.

- E agora, o que faremos? – perguntou, esperando a ordem da sacerdotisa de Shara.

- O que você acha que nós devemos fazer? – surpreendeu Jedala, jogando a decisão para ele.

- Eu diria que devemos continuar com o plano. Se Kasari não morreu, então eu terei uma nova chance de matá-lo.

Jedala chegou mais perto de Ares, e a voz baixou uma oitava.

- Exatamente. Mas desta vez faremos do jeito certo.

- E por onde começamos? A esta hora o seu corpo já deve estar se recompondo em algum santuário oculto. E isso pode ser em qualquer ponto do reino.

- Ares – a sacerdotisa o interrompeu – Esqueça o corpo. Ainda vai demorar para o inimigo voltar à atividade. Além disso, não adianta nada nós o destruirmos dessa maneira. Você precisa encontrar a pedra de sangue.

- O que é isso?

Jedala fechou os olhos e respirou fundo, buscando lembranças confusas, truncadas, como aquelas que nascem dos sonhos, e que não fazem muito sentido se não forem interpretadas e montadas à coerência.

- Uma pedra de sangue é uma jóia, carregada de magia ancestral. Os magos costumavam usá-las durante os Anos Cinzentos, mas quase todas se perderam após a unificação de Sarion. Nessa pedra, o feiticeiro guarda suas memórias, seu sopro de vida, sua alma. Kasari certamente usava uma dessas antes de Shusan ser invadida. Você precisa encontrar e destruir a gema.

- Para só depois terminar o serviço – compreendeu Ares.

- A jóia é a prioridade – determinou Jedala.

- Muito bem. Mas onde encontrá-la? Se a pedra era tão preciosa assim, então deve estar muito bem escondida.

- É aí que entra a ironia. Semanas antes do ataque a Shusan, o bruxo fez uma visita à cidade de Hélix. Lá, a pedra de sangue foi roubada por um hobbit, um curioso e supostamente inofensivo gatuno local.

- Kasari, furtado por um hobbit? - Ares não pôde conter o riso – Que situação mais extravagante. Então esse pequenino tem a jóia? Difícil imaginar que ainda esteja vivo.

- Vivo ele está – respondeu a sacerdotisa – Mas eu ainda não sei se a gema continua com ele. De qualquer maneira, é nosso ponto de partida.

O cavaleiro tomou de novo a espada, quase em reflexo, e parecia pronto para começar a aventura naquele exato momento. Enquanto isso, na escuridão da noite além da varanda, vaga-lumes piscavam no céu de verão.

- Tem mais uma coisa – acrescentou Jedala – Esta é uma missão secreta.

- Por que secreta? – quis saber Ares. Kasari era odiado por muita gente. Seria ótimo contar com aliados nas cidades e vilas por onde passasse.

- Você viu o que aconteceu da última vez. Se os magos souberem que ele está vivo, também vão querer achar a pedra de sangue. Uma jóia dessas na mão de um feiticeiro seria um perigo para o reino.

- Porque eles nunca iriam destruí-la. Tentariam usá-la.

- Pior. O artefato pode dar início a outra guerra – enfatizou Jedala - A pedra de sangue deve ser despedaçada. Faça isso antes que mais alguém possa pegá-la.

- Eu farei – prometeu o cavaleiro, e mudou o foco da conversa - E você? Vem comigo?

- Eu não posso. Não devo. Sou mais útil aqui, no templo. Eu tenho que ficar para receber as instruções da deusa. Tenho que continuar sonhando e interpretando os sinais.

- Para onde eu devo ir? Onde está esse tal hobbit agora?

- Shara nos dirá no tempo certo. Antes, porém, você deve recrutar o seu pessoal. Esta é uma demanda muito perigosa para ser executada sozinha. Você deve reunir certos aventureiros para ajudá-lo. Alguns você poderá escolher; outros serão recomendados por mim.

- Acho que já sei por onde começar.

- Então partirá amanhã. Eu encontrarei meios de me comunicar com você, esteja onde estiver.

Quando Ares e Jedala terminaram a conversa, era quase dia. Os dois ainda continuaram na varanda por algum tempo, relembrando a época em que o cavaleiro era só um menino, quando suas únicas preocupações eram assustar os corvos e decorar as lições de escrita.

De repente, o céu foi clareando. Os primeiros raios dourados iluminaram o cume da montanha, e Ares se sentiu muito melhor.

- Acho que tudo o que eu queria era ver o nascer do sol.

- Eu também – sorriu Jedala – Eu também.

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Capítulo 3 - Fogo e Trevas III

O demônio de fogo e trevas abriu a mandíbula e levou o hobbit à boca. Desesperado, Milo enfiou a mão em sua bolsinha e começou a jogar sobre o monstro tudo o que tinha lá dentro. As quinquilharias não faziam nenhum efeito, mas de repente o pequenino sacou um frasco diminuto, contendo o que parecia ser água, e o arremessou entre os olhos da fera.

O recipiente se quebrou e algo extraordinário aconteceu. Ao contato com o líquido, o rosto do demônio começou a borbulhar, derreter e corroer, como que atingido por ácido!

A fera deu um urro e largou Milo, que por ser ágil, pequeno e muito leve deu uma cambalhota e caiu suavemente no chão, sem se ferir. Ele, mais do que ninguém, estava surpreso com o que acabara de fazer.

- É água benta – anunciou Zamir, enquanto preparava ataduras para amarrar o braço quebrado de Alana – Parece que o nosso amiguinho andou vasculhando o bolso de algum sacerdote.

- Isso muda tudo – murmurou Ares, tentando pensar numa tática de luta – Grammal! – ele gritou – Preciso de algum tempo. Será que você pode distrair o demônio?

- Deixa comigo – sorriu o semi-orc, e fez o que achava mais prático. Ainda sob os efeitos da força descomunal do feitiço de Alana, ele ergueu sobre a cabeça uma pesada coluna de pedra. O fragmento era feito de granito e deveria ter quase uma tonelada! Mas isso não o impediu de jogá-lo sobre o monstro, que, ferido, não conseguiu se desviar.

A pilastra bateu no peito do demônio, que desabou de costas no solo, e lá ficou, imprensado sob a pilastra. Dentro em pouco se libertaria, mas aqueles instantes seriam suficientes para Ares.

O cavaleiro atravessou a câmara e segurou o braço do hobbit.

- Milo, você tem mais um daqueles frascos?

- Olha, Ares, você me desculpe. Eu sei que era um utensílio de igreja, e a gente tem de respeitar os deuses, mas eu ia devolver... Eu juro!

- Responda a pergunta – cortou o cavaleiro, impaciente. Cada segundo era precioso – Você tem mais algum com você ou aquele era o único?

Milo pôs a mão na bolsa, não achou nada, e foi vasculhar a algibeira. No momento seguinte tirou um segundo frasco, idêntico. Ares logo percebeu que era mesmo água benta. O recipiente de vidro tinha o símbolo de Audrion, o deus do Sol.

- Vou ficar com isso – avisou, correndo para o outro extremo da sala – E você, mantenha-se longe da linha de combate.

O cavaleiro rolou até o lugar onde estava o arqueiro Naga, protegido por uma enorme laje de pedra tombada. Segurava o arco, atento, com uma flecha preparada, mas todos os seus disparos até ali tinham sido inúteis contra o demônio de fogo e trevas.

- Naga – disse Ares – Você consegue amarrar este frasco na ponta de uma flecha e acertar a boca do demônio?

O arqueiro pegou o recipiente para sentir seu peso.

- É pequeno... Acho que consigo, mas vai ser um tiro difícil.

- Do que você precisa?

- Primeiro, de uma distração. Depois, preciso que o monstro abra a boca.

- Vamos tentar. É nossa única chance – falou Ares, e antes de entregar definitivamente o frasco a Naga borrifou algumas gotas de água benta na lâmina de sua espada – Garanto que isto vai assustá-lo.

Enquanto isso, na zona de combate, o demônio se recuperava, e forçou para o lado a coluna que o prendia, libertando-se. Voltou à batalha ainda mais furioso, agora determinado a matar os heróis.

Por um minuto, a fera vasculhou a sala com o olhar, à procura de Milo, que o havia ferido gravemente. Mas o hobbit a essa hora já estava bem escondido, então o monstro se virou para Zamir e Alana.

A feiticeira continuava caída, quase desmaiada de dor pelo braço quebrado, e Zamir tentava improvisar uma tala. Mas quando ele viu o demônio se aproximando com todo o vigor, não teve opção a não ser enfrentá-lo. Ares e Grammal ainda estavam distantes, e a criatura, muito mais alta e com pernas mais compridas, obviamente corria mais rápido.

Quando o monstro de fogo e trevas brandiu seu machado, Zamir invocou um feitiço, chamado escudo arcano, e no instante em que a lâmina desceu foi repelida por um muro de força quase invisível, que protegia a dianteira do bruxo.

Surpresa, mas não espantada, a fera levantou novamente o machado flamejante para uma segunda investida, agora mais forte. Mas na hora em que o demônio esticou o corpo para tomar impulso, Ares surgiu de trás de uma laje e pulou com a espada em riste. O fio da arma acertou o demônio bem no queixo, de baixo para cima, e como o aço fora umedecido com água benta fez um corte profundo na mandíbula do inimigo.

Sentindo o golpe, o demônio abriu a boca para gritar, e Naga enxergou a oportunidade. Escondido no outro lado da câmara, o arqueiro mirou uma flecha no rosto da criatura. Na ponta da seta havia amarrado o pequeno frasco, e no momento preciso disparou!

A flecha cortou o ar, atravessou as presas do monstro e ficou fundo em sua garganta. Quando a fera cerrou os dentes instintivamente, o recipiente estourou dentro dele, e um evento horrível teve início.

O líquido correu por dentro da besta, derretendo primeiro a cabeça. Os olhos vermelhos saltaram, como labaredas numa fogueira, e os chifres amoleceram. O corpo decaiu e dentro em pouco o temível demônio de fogo e trevas era só uma massa de lava incandescente no antes gelado chão de rocha da sala.

- Bom tiro – elogiou Grammal, aproximando-se de Naga.

- Como doce na boca de criança – brincou o arqueiro.

Do outro lado da câmara, Zamir parecia cansado. O encanto do escudo tinha consumido muito da sua energia.

- Era um oponente formidável – falou o bruxo a Ares, que já se ajoelhava para assistir Alana - Se ele era só um guardião, então ainda vamos ter problemas aqui.

Ali perto, a feiticeira estava tremendo, em choque pela dor lancinante. Sangue pingava através do osso partido.

Deixando sua espada de lado, Ares tocou, com uma mão, o cotovelo da moça, e com a outra procurou esticar o ombro. Alana deve ter sentido, porque despertou do torpor com um grito, mas logo depois a agonia passou.

Curioso, Milo surgiu da escuridão e se aproximou. Viu que as mãos do cavaleiro coruscavam com um estranho brilho mágico, e aos poucos o braço de Alana começou a voltar ao lugar. O osso rejuntou as extremidades partidas, e o ferimento fechou, restando apenas um leve hematoma sob a pele.

Espantado, o hobbit deu um passo atrás. Nunca antes vira Ares invocar qualquer tipo de mágica.

- As mãos que curam – explicou Zamir, neutro.

- É feitiçaria? – quiser saber Milo.

- Longe disso. É uma habilidade comum aos paladinos de Shara. Entenda isso mais como um dom, um presente da divindade. É a deusa que escolhe quando e quem o cavaleiro pode curar. E nem sempre ele consegue.

Quando Alana se recuperou plenamente e a massa negra que antes era o demônio de fogo e trevas esfriou, Zamir lembrou-se de quem tinha iniciado aquela desordem, e tocou sinistramente o ombro do hobbit.

- Agora nós vamos ter uma conversa, amiguinho.

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Capítulo 2 - Fogo e Trevas II

O demônio de fogo e trevas se solidificou bem no centro da câmara subterrânea, e já apareceu agressivo, empunhando um enorme machado flamejante. Tinha três metros de altura e olhos em chamas.

Grammal, o semi-orc, aproveitou-se da vantagem. De onde estava, em pé sobre uma laje de pedra, ele ficava um nível acima do monstro, e não pensou duas vezes. Saltou com todo o vigor para fincar seu machado duplo no crânio da criatura.

Mirou entre os chifres, e acertou o golpe perfeito! Mas, então, aconteceu algo que o bárbaro não esperava. Em vez de a lâmina cravar fundo, ela foi repelida, sequer ferindo o demônio. Era como se a pancada perfeita, aplicada com toda a força, tivesse encontrado um muro de pedra, praticamente impenetrável.

Grammal escorregou para o chão e caiu desengonçado dentro do raio de ataque da fera. Nesse instante, Ares, o cavaleiro, tomou à frente e rodou sua espada, principiando um movimento ofensivo. Novamente, porém, a investida foi inútil. A arma passou raspando no abdome do monstro, sem nem mesmo arranhá-lo.

A resposta veio de maneira cruel, e Ares, posicionado mais próximo à besta, era o alvo agora. O demônio usou seu machado de fogo e acertou o cavaleiro no ombro. A força do impacto foi tanta que ele foi arremessado para o fundo da sala, e não fosse sua pesada armadura de metal teria sido feito em pedaços.

De trás de uma coluna tombada, Naga, o arqueiro, disparou duas flechas, que simplesmente bateram na carcaça da fera e caíram.

- A pele dele é como rocha vulcânica endurecida – anunciou Ares, recobrando a postura depois do impacto.

Mas a criatura não era imune a todos os tipos de ataque. Ela já se preparava para cortar Grammal ao meio quando Alana, a feiticeira, invocou um globo de pura energia mágica. Lançou a bola luminosa sobre o inimigo, e o raio bateu na fronte do monstro, queimando seu peito e parte do braço.

- Essa abominação só é afetada por mágica – avisou o Zamir, o bruxo, falando alto para que sua voz sobressaísse aos gritos diabólicos da fera.

- Não acho que os meus golpes de energia sejam o suficiente para matá-lo – reconheceu Alana -, mas podem feri-lo.

Ares e Grammal se juntaram na linha de frente, para uma segunda rodada de combate. Desta vez, o demônio atacou primeiro, e atacou duro. Usou o machado flamejante para acertar Grammal, que só não morreu porque foi rápido o bastante para se inclinar, minimizando a gravidade do corte. Ao se esquivar, contudo, tropeçou e caiu no chão. Foi quando a criatura pisou nele com os cascos de fogo, pressionando seu corpo contra o solo da câmara. Ares tentou encravar a espada no joelho do inimigo, mas a lâmina não penetrava.

A placa que protegia o tórax de Grammal era a única coisa que o mantinha vivo, mas esquentava a cada instante, feito chapa quente. Dentro em pouco, o semi-orc seria estorricado.

- Não tem jeito de feri-lo – repetiu Zamir, mas Alana tinha uma idéia.

A feiticeira tomou coragem e avançou à zona de combate. Ao mesmo tempo em que caminhava agachada, recitou um encantamento. Tocou a ponta do braço de Grammal, e os músculos do bárbaro ganharam mais robustez.

- É o encanto da força – percebeu Zamir.

- Levante-se agora, Grammal. Tente ficar em pé – disse Alana.

Com o corpo quase queimado, o semi-orc segurou o casco do demônio com as duas mãos e o ergueu. A fera estranhou, e logo deu um passo atrás, libertando a pisada. O que parecia impossível acontecera. A mágica de Alana havia deixado Grammal com a energia de 15 homens!

- Agora sim! – sorriu o bárbaro, levantado sua arma – Espere só até eu enfiar minha lâmina na sua barriga, cara de bode.

- Ainda não, Grammal. Segure seus golpes! – ordenou Ares – Estar mais forte não significa que agora suas armas possam matá-lo. Tente pensar estrategicamente.

- Minha estratégia é arrancar os miolos deste monstro, se é que ele algum – retrucou, e partiu animado para o confronto. Mas o demônio tinha, sim, algum nível de inteligência, ainda que destorcida. Percebendo que Alana era uma feiticeira e que seus encantos poderiam afetá-lo, ele usou sua mão esquerda para agredir a mulher. Por instinto, Alana pulou para trás e protegeu o rosto. Escapou das garras, mas o punho da fera a acertou no quadril.

Como não era uma lutadora e desconhecia mesmo os mais elementares movimentos de combate, a feiticeira sofreu um baque tremendo, e foi literalmente jogada longe. Só parou ao chocar-se contra a parede da sala, e mesmo no calor da batalha todos escutaram o arrepiante som abafado do braço da moça se partido ao meio. Ela gritou de dor quando viu a ponta sangrenta do osso saltando para fora da pele.

Zamir, que já preparava um feitiço de combate, anulou sua mágica e correu para prestar os primeiros socorros. Infelizmente, o inimigo era um demônio, invocado ali por um encantamento. Esse tipo de criatura conhece bem a habilidade dos magos, e é por isso que os escolhem sempre como seus alvos prioritários. Não à toa, a fera esqueceu totalmente de Grammal, Ares e Naga e avançou contra Alana e Zamir.

E nesse instante aconteceu o que Ares tanto temia. Milo, o hobbit, sentindo-se terrivelmente responsável por ter iniciado toda aquela confusão, saltou do teto entre Alana e o demônio, e sacou sua faca, pronto para defendê-los. Seria uma cena cômica, não fosse tão trágica: um hobbit empunhando um punhal contra um gigante do Inferno!

Ares resmungou consigo mesmo, porque sabia que não poderia proteger Milo, e que ele seria trucidado, rapidamente.

Vendo aquele hobbit insignificante bloqueando seu objetivo, o demônio o agarrou numa só braçada e o ergueu no ar. Talvez tenha pensado que seria mais fácil engoli-lo, porque se preparou para levá-lo à boca.

Desesperado, Milo abriu sua bolsinha e começou a jogar sobre o monstro tudo o que tinha lá dentro: bolas de gude, um dado, duas velas, um apito e mais algumas bugigangas que havia recolhido durante a viagem. Enquanto isso, Grammal acertou a fera nas costelas, e com sua força fez o inimigo balançar, mas a triste realidade era que, sem um bom feitiço ou armas mágicas, era impossível molestá-lo.

Seja como for que terminasse este combate, ninguém ia poder reclamar com Milo, ou culpá-lo por ter invocado o demônio, pensou Ares. Isso porquê o hobbit não tinha mais a menor chance de sobrevivência. Em dois segundos, seria engolido pela criatura infernal, mastigado pelos dentes vermelhos e digerido em lava fervente. E o pior: nada restava aos seus amigos a não ser assistir passivos àquele horrível espetáculo.

Agora, com Alana ferida, Zamir na linha de frente e os guerreiros sem armas apropriadas à luta, só um milagre salvaria o pobre hobbit da morte certa.

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Conclui no próximo capítulo

Capítulo 1 - Fogo e Trevas I

Naga rastejou como uma cobra pela sala empoeirada, cabeça colada ao chão, braços e pernas deslizantes contra a pedra gelada. Acomodou-se atrás de uma coluna tombada, e havia muitas naquela câmara subterrânea. Cauteloso, ergueu o corpo e observou o lugar.

Vazio, pensou. Nada além de entulhos: restos de armas, esqueletos e pedaços de rocha remascentes de um combate acontecido ali há muito tempo. O aposento, amplo como as salas de jantar dos castelos, estava iluminado apenas por um feixe de luz que entrava pelo teto, indicando que ainda era dia no mundo exterior.

Convencido de que não havia nenhum perigo iminente, o arqueiro se levantou, desenhando uma silhueta negra contra a parede. Por precaução, pôs uma seta no arco. Em seguida, assoviou duas vezes, imitando o ruído de um rato, e seus companheiros finalmente ingressaram na câmara.

Quem vinha primeiro era Ares, segurando sua enorme espada de duas mãos. Era um cavaleiro, mas estava a pé, e trajava uma armadura de placas de metal, com o visor do elmo levantado. Alana, a feiticeira, caminhava logo depois, seguida pelo bruxo Zamir, com suas vestes negras e cajado de marfim escuro. Na retaguarda apareceu Grammal, o semi-orc, um guerreiro bárbaro meio gente, meio orc, que tinha a força de três homens e carregava um pesado machado duplo, com lâminas-irmãs nas duas extremidades.

- Está limpo – disse Naga, tirando sua espada curvada e a usando para cutucar o chão – Eles devem ter morrido há pelo menos cem anos – mostrou os cadáveres em frangalhos, espalhados por todo o aposento.

- Eu não gosto deste lugar – resmungou Zamir. Era jovem, de pele branca e cabelos escuros, mas sua vivência dava àquelas palavras um ar veterano.

- Não é o único – disse Ares – Existe uma presença maligna aqui. Eu posso sentir.

- Acho que seria melhor então vasculharmos a escuridão – sugeriu Alana, e começou a recitar um feitiço – Ast kabar alux gander suamar – falou, e da palma da mão nasceu uma esfera de luz, que brilhava com a intensidade de uma tocha.Usando suas capacidades mágicas, a moça guiou a esfera telepaticamente, iluminando, uma a uma, todas as alcovas e partes obscuras.

- O que me incomoda não é a escuridão, mas a luz – Zamir apontou para o raio luminoso que penetrava do teto.

- Alguém fez esse buraco – comentou Grammal, que conhecia bem o trabalho em pedra, pois já tinha escavado minas nos seus tempos de escravo – Não foi resultado de um desabamento.

- É claro que foi calculado – retrucou Zamir, impaciente.

- E o que isso tem de mais? – perguntou Naga. Era um guardião, hábil na vida selvagem, mas conhecia pouco da civilização e de sua complexa engenharia. Templos, castelos e câmaras secretas eram um mistério para ele.

- A luz às vezes é usada para acionar mecanismos, como armadilhas – esclareceu Ares - Já vi alguns desse tipo nos túneis de Mir Shans.

O cavaleiro observou o chão cautelosamente e depois teve uma idéia.

- Grammal, ajude-me a subir em uma dessas colunas. De um ponto mais alto poderei observar melhor o piso da sala...

Mas, quando disse isso, virou o rosto e viu que o próprio Grammal já havia trepado numa laje de pedra. Fora criado nos montanhas, onde os homens precisavam aprender a escalar e a subir em qualquer coisa que fosse. - O que vê daí de cima? – aproveitou Ares. Grammal era mesmo o melhor para aquela tarefa. Seus olhos de orc eram adaptados para enxergar na escuridão, e ele conseguiria decifrar detalhes mesmo naquela meia luz. O bárbaro grandalhão ficou calado um instante, enquanto fitava o chão.

- Tem algumas linhas marcadas na pedra, como desenhos.

- Que tipos de desenhos? – perguntou Zamir, preocupado.

- Parecem mais inscrições...

- Não as leia! – gritou o bruxo, histérico. O semi-orc achou engraçado o nervosismo do companheiro.

- Não sei se você se lembra, mas eu não sei ler – avisou, indiferente – E mesmo que soubesse, qual seria o problema em...

- BAKU, BAKU, BASAN! – berrou uma voz eufórica, sobre outra coluna. Era Milo Pés-Ligeiros, o hobbit, que havia ficado para trás em certo ponto da caminhada. Como era pequeno e esguio, ninguém o vira chegando, até ele surgir ali, quase como um passe de mágica – Eu li, eu li – repetiu, contente por ter dado a resposta – Acho que são palavras mágicas. Meu pai tinha um livro que contava sobre elas, acho...

- Essa não... – disse Alana, abaixando a cabeça. A expressão de Zamir não era muito diferente.

- O que foi, pessoal? Fiz alguma coisa errada? – E quando ele disse isso, toda a câmara começou a tremer.

Ares desceu o visor do elmo, sacou a espada e deu a ordem de combate.

- Espalhem-se!

- Mas o que está acontecendo? – Milo continuava sem entender nada.

- Eram mesmo palavras mágicas, Milo – disse Alana - Que ativam um feitiço.

- Feitiço, que feitiço? É coisa ruim? Se for, desculpem...

- Desça já daí! – gritou o cavaleiro – Grammal, para o fundo da sala. Naga, prepare o seu arco.

“Baku Baku Basan” era um tipo de gatilho místico, que acionava uma armadilha. Mas não era uma armadilha comum. As palavras iniciaram um encantamento de invocação, que traria àquele plano um guardião diabólico.

Então, diante de todos, a mágica fez efeito.A escuridão da câmara começou a se mover e a convergir para um ponto central. Era como se o breu se solidificasse em uma única forma humanóide, com braços, pernas e chifres. De repente, a tenebrosidade endureceu tal qual rocha vulcânica, e dela surgiu um demônio, mistura de negritude e fogo! Tinha três metros de altura, chifres envergados e rosto semelhante ao dos touros, embora fosse impossível distinguir suas exatas feições.

Quando a criatura deu um passo à frente, brandindo um machado flamejante, o aposento sacudiu com sua pegada. A pata era do tamanho de uma cabeça humana, tinha cascos negros e duas ferraduras em brasa.

- Um demônio de fogo e trevas – reconheceu Ares, pronto para lançar a primeira investida.

- Ao combate! – berrou o impulsivo Grammal, enquanto Zamir e Alana preparavam seus feitiços.

Recuado, Milo buscou sua faca e tentou raciocinar qual seria a melhor maneira de ajudar, mas ainda estava tímido por ter posto os amigos naquela confusão.

- Gente, foi sem querer – disse o hobbit, baixinho, mas ninguém mais tinha ouvidos para escutar.

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Continua no próximo capítulo