- Vai ter que servir. Além disso, não temos muito tempo – Ares e Grammal começaram a caminhar, o semi-orc guiando o cavaleiro pelos escuros becos da Cidadela dos Ladrões – Se toparmos com algum guarda, só vai haver mais confusão.
Grammal conhecia Yamasha suficientemente bem para evitar as áreas indesejáveis. Agora, porém, não tinha alternativa. O Distrito Sul era o bairro dos loucos, dos irrecuperáveis, dos viciados que passavam dia e noite embriagados pela fumaça da poêmia.
A poêmia era uma das plantas mais cobiçadas do reino e nascia em cores diversas, cada qual com sua propriedade. Algumas eram usadas para produzir veneno, outras para causar alucinações, algumas para fazer um homem relaxar e havia aquelas utilizadas como afrodisíaco. Tudo dependia do tipo da flor e da forma como era preparada. É claro que muitos consumiam a poêmia como entorpecente, tornando-se profundamente dependente de seus efeitos.
O Distrito Sul era cheio de pequenas tavernas onde os traficantes vendiam principalmente a poêmia vermelha, que induzia o usuário a um estado moderado de loucura. As reações variavam. Os mais violentos sonhavam com inimigos imaginários, lutavam com o vento e matavam uns aos outros em meio ao frenesi. Mas a maioria ficava ali, caída pelas ruas, na sarjeta, sem vontade nem mesmo para se mexer. A boa notícia era que até os ladrões evitavam a vizinhança, e os guardas só apareciam em raras ocasiões.
Ares e Grammal entraram por uma rua mais ampla, desviando dos moribundos no chão - às vezes era difícil saber quem estava vivo e quem estava morto. É verdade que qualquer guerreiro bem treinado reconhecia um cadáver pelo cheiro, mas o aroma adocicado da planta poluía o ar, confundindo os odores comuns.
Os dois passaram reto pelas estalagens, até chegar a uma esquina próxima à muralha. Grammal enxergou uma porta de ferro reforçada, recortada na pedra, que dava acesso ao lado de fora de Yamasha. Estava guarnecida por cinco soldados.
Antes que fossem notados, ele e o cavaleiro recuaram às sombras.
- Cinco guardas – sussurrou Grammal – Usam cotas de malha, capacetes de aço e carregam espadas.
- Esta é a saída? – perguntou Ares, com certo ar de decepção – Não é um portão, é uma porta. Muito menor do que eu pensava.
- Tanto melhor. Menos guerreiros para defendê-la.
O cavaleiro não respondeu. Em vez disso, apontou para cima. A muralha era suficientemente grossa para formar, em seu topo, um passadiço, uma área em que os soldados podiam circular, proteger e observar. Lá, havia mais cinco guardiões com arcos, prontos a atirar flechas em quem arrumasse briga na rua.
- Aí se vai o nosso plano – desanimou o bárbaro – Até podíamos encarar esses guardas, mas não com uma chuva de flechas sobre nossas cabeças.
- Você consegue escalar a muralha?
Grammal sorriu, em orgulho quase infantil. Fora criado nas montanhas Naghara, uma região deserta e inóspita onde a caça estava sempre em covis escondidos na rocha.
- Eu, claro. Mas você, duvido – ele olhou para a armadura pesada de Ares.
- Tenho uma idéia.
Os cinco sentinelas que defendiam a porta não sabiam exatamente o que estava acontecendo. Aquela entrada nunca precisara ser protegida. Os governantes da cidade tinham um acordo com os traficantes – deixavam a passagem livre em troca de um gordo suborno. Mas algumas horas atrás um viajante matara quatro vigias no portão principal, tentando furar o bloqueio. Depois, desaparecera na noite.
Tudo o que aqueles soldados tinham era uma descrição tosca. O sujeito usava uma espada de duas mãos e vestia uma armadura completa. Por via das dúvidas, a ordem era para impedir que qualquer um deixasse Yamasha até que as casas e tavernas fossem vasculhadas.
O sargento Zanoro, que comandava aquela guarnição, não tinha esperança de prender ninguém em seu turno, até que uma figura de capa e capuz apareceu caminhando em direção à muralha. De início, não pensou que pudesse ser o fugitivo, mas depois entendeu que o sobretudo poderia estar sendo usado para ocultar uma armadura.
- Alto lá, seja quem for – o sargento tomou a iniciativa – Esta passagem está fechada.
- Peço permissão para transpô-la. Vim a Yamasha tratar de negócios, e agora tenho assuntos urgentes em outras partes do reino – era verdade.
O sargento, então, notou que o forasteiro trajava mesmo uma armadura, e levava uma espada igual à descrita embainhada nas costas. Podia ser o homem que buscava! Por um instante, sentiu-se animado por tê-lo ao seu alcance; por outro, ouvira que era um oponente terrível em combate. Cauteloso, escorregou a mão ao cabo da espada. Para sua surpresa, porém, o forasteiro fez o mesmo, e desafiou:
- Quer apostar quem saca mais rápido?
Zarono gelou. Aquele homem era rápido em suas reações, e movia-se como um espadachim competente. Mas logo em seguida lembrou-se que tinha o auxílio de quatro militares a pé e cinco arqueiros no passadiço, que observavam atentos a conclusão do impasse.
- Seu cão estrangeiro! Ajoelhe-se agora e entregue sua arma. Só preciso dar um sinal aos meus arqueiros e você será feito em frangalhos.
- Vai sacar ou não? – alheio às ameaças, o cavaleiro estava focado no combate. Soou como um novo desafio, mas não era. O código da cavalaria proibia os paladinos de atacar oponentes desarmados.
Furioso, o sargento puxou a espada. Foi tudo muito rápido. Antes que a lâmina saísse completamente da bainha, a arma do cavaleiro brilhou na noite e rasgou a garganta do militar, de um lado a outro.
Os outros guardas a pé pegaram suas espadas, e no passadiço os arqueiros miraram as flechas. Mas quando estavam prontos a atirar, uma mancha assustadora revelou-se na escuridão. Grammal subira na muralha e agora pegava os sentinelas desprevenidos!
Com um só golpe, o bárbaro pôs dois a nocaute. O primeiro sentiu o fio do machado na cabeça. Nem o elmo de aço ajudou. O golpe abriu um buraco no crânio e seguiu seu curso para atingir o segundo arqueiro no rosto. Um terceiro levou um esbarrão e perdeu o tiro, mas outros dois conseguiram disparar.
Uma flecha errou o alvo e a outra acertou o cavaleiro Ares no ombro. Felizmente, a armadura absorveu o impacto, e a flecha ficou presa na ombreira de metal, sem alcançar a carne.
Com o líder morto, era mais fácil derrotar os outros guardas. Ares entrou em combate com quatro guerreiros, feriu um no braço e matou o segundo com uma estocada no peito. Os restantes fugiram.
No passadiço, aconteceu coisa parecida. Dos três arqueiros ainda vivos, só um tentou encarar Grammal, e acabou com o machado fincado nas costas.
- Encontrei a chave – gritou Ares, lá de baixo, mexendo no cinto do sargento.
- Ótimo. Vamos sair logo daqui – insistiu o semi-orc, enquanto descia a muralha com habilidade impressionante.
Ares não entendia o motivo da pressa. É claro que não podiam ficar ali por muito tempo, mas os guardas haviam sido derrotados.
Então, escutaram um apito: um batalhão estava a caminho.
- Eu conheço o procedimento – justificou-se Grammal.
******************************